
Trinta vagas em Medicina, mensagens de “pressão” e acusações públicas entre reitor e ministro. O caso que agita o ensino superior começou com uma lista de candidatos que não tinham a nota mínima exigida e mesmo assim foram informados de que estavam admitidos. A partir daí, a crise escalou: o reitor denunciou tentativas de influência, o ministro rejeitou a versão e chamou a acusação de mentira, e a Faculdade de Medicina criticou a decisão unilateral de travar o processo.
António Sousa Pereira afirmou ter recebido pressões de “pessoas influentes com acesso ao poder” para validar a entrada de 30 candidatos num concurso especial para licenciados, mesmo sem a nota mínima de 14 valores. Não citou nomes. Do outro lado, Fernando Alexandre diz que não pressionou ninguém: segundo o ministro, apenas propôs estudar vagas supernumerárias — lugares extra, fora do contingente normal — se houvesse base legal. A Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC) foi chamada a opinar e concluiu que essa alternativa não tinha suporte jurídico e ainda poderia ferir os princípios de legalidade, igualdade e segurança jurídica. O parecer foi comunicado ao reitor e à direção da Faculdade de Medicina.
O que está em causa
O concurso especial para licenciados em Medicina tem regras claras: exige um mínimo de 14 valores (numa escala de 0 a 20) para concorrer. Segundo o reitor, houve candidatos sem essa fasquia que foram notificados como admitidos. A decisão final cabe à reitoria, que pode ratificar ou não os resultados da comissão de seleção. Ao travar a ratificação, o reitor alegou pressões externas; a Faculdade de Medicina respondeu dizendo desconhecer qualquer pressão e lamentou não ter sido consultada antes de declarações públicas que, no entender da direção, prejudicam a reputação institucional.
O Ministério apresenta uma cronologia com datas e papéis. Depois de o tema chegar ao gabinete, a tutela pediu um parecer à IGEC em 6 de agosto. A resposta chegou a 13 de agosto com um não claro às vagas supernumerárias para este caso. A 21 de agosto, a conclusão foi comunicada ao reitor e à direção da faculdade. O ministro sustenta que houve alinhamento prévio com o reitor para só avançar com uma solução se fosse legal — como não era, caiu.
O choque não ficou só entre reitoria e governo. O Partido Socialista anunciou que quer audições parlamentares urgentes para ouvir o reitor e clarificar o que classificou como matéria grave, por contornar mecanismos legais de acesso ao ensino superior. Dentro da universidade, estudantes pediram uma reunião urgente do Senado para obter respostas antes do arranque do ano letivo. O ambiente é de incerteza para os 30 candidatos e para quem ficou de fora contando com as regras do concurso.
Porquê tanta sensibilidade? Medicina é um dos cursos mais concorridos do país. Um desvio à regra — mesmo que com vagas extra — mexe com a confiança de milhares de candidatos e com a perceção de justiça. Em concursos públicos, detalhes contam: um e-mail de admissão precipitado, uma regra mal interpretada ou uma solução “criativa” sem amparo legal acabam em recursos, ações nos tribunais administrativos e meses de desgaste institucional.
- 6 de agosto: o Ministério pede à IGEC um parecer sobre criar vagas supernumerárias.
- 13 de agosto: a IGEC responde que não há base legal e alerta para riscos de violar princípios de legalidade e igualdade.
- 21 de agosto: o parecer é comunicado ao reitor e à direção da Faculdade de Medicina.
No plano interno, a direção da Faculdade de Medicina criticou a “decisão unilateral” do reitor de não ratificar os resultados sem consulta prévia ao diretor. O reitor, por sua vez, sustenta que cumpriu o seu papel de fiscalização e transparência ao recusar validar admissões que, a seu ver, feriam a regra da nota mínima. O contraste de posições expõe uma fissura de governação: quem decide o quê e quando, num processo que exige rapidez, rigor e comunicação afinada.
O que pode acontecer agora
Há pelo menos três frentes. No plano político, a Assembleia da República poderá ouvir o reitor e o ministro para fechar a cronologia, apurar quem propôs o quê e com base em que documentos. No plano institucional, o Senado académico pode esclarecer como a informação de admissão foi emitida a candidatos sem os critérios e se houve falhas procedimentais da comissão de seleção. No plano jurídico, o processo pode gerar queixas e impugnações: candidatos que se sentiram admitidos poderão alegar expectativa legítima, enquanto outros que cumpriram as regras podem contestar qualquer solução que os prejudique.
Para a comunidade académica, o recado é claro: a regra da nota mínima não é decorativa. Mudar o jogo a meio — mesmo com boas intenções — esbarra em princípios de igualdade de oportunidades. Para os 30 candidatos, o desfecho depende do que o Senado e a reitoria decidirem nos próximos dias e de como a tutela enquadrará o parecer da IGEC. Transparência e atas detalhadas de cada passo podem ser a única forma de estancar a crise.
No centro de tudo está a Universidade do Porto, que tenta proteger a sua reputação enquanto lida com pressões políticas, dúvidas jurídicas e a ansiedade de estudantes e famílias. Ninguém ganha com decisões duvidosas: a confiança quebra rápido e custa muito a recuperar. O caso é um teste à capacidade das instituições de corrigirem o rumo sem atropelar as regras.
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